sábado, 26 de julho de 2008

Topografia

Parte I - O abismo

O quarto, ela divide com a mãe. Há duas camas estreitas. Sentada em seu colchão, ela vê à sua frente o leito da mãe, paralelo, contra a parede oposta, suja e embolorada.

Entre a cama dela e a da mãe, mil anos abriram o rasgo de um despenhadeiro terrível, erodido até o fundo da própria Terra. Em comprimento, ele vai do nascente ao poente, e não há vista que lhe enxergue um fim. Sua largura, essa é de uma distância imensa. Mas ainda dá para ver a cama da mãe do lado de lá.

Dia após dia, cada uma em sua margem, mãe e filha represaram o abismo e a preencheram até a borda com vidro, espinhos e os corpos de um milhão de mortos. Assim, pisando sobre esse conteúdo pavoroso, é – em tese – possível cruzá-lo.

A filha sabe disso. E, por muito tempo, todo dia, ao acordar, ela dava início à travessia. Pé por pé, ia andando sobre o lago medonho, sem nome, sem água, em direção à margem oposta, à cama da mãe que dorme eterna, imperturbada. Com isso, cortava os pés, furava-os, contaminava-os com a sujeira daquela morte toda. Todo dia, ela chegava, exausta, só até metade do caminho. Vendo a mãe na margem oposta ainda inconsciente – e vencida pela dor – ela regressava.

Nascia o sol, tentava ela tudo de novo. Limpava as feridas da tentativa anterior, enrolava panos nos pés cortados, fazia uma prece e punha-se a andar sobre a massa suja e aguda.

Sempre que sentava-se outra vez na sua cama, no seu lugar, constatava que, seus pés estavam mais doentes e tortos do que da última vez. Erguia a cabeça e via: o sono da mãe era agora mais profundo.

Debilitada e sem ânimo, conheceu a resignação. Em uma manhã, ergueu-se e tentou cuidar melhor dos pés, abolindo a tentativa. Não tentaria mais atravessar. Esperaria que a mãe acordasse. Sua margem seria o mundo, e ali aconteceria a vida. Não esquecia do abismo, não esquecia da mãe, mas passou a velar o sono da velha com olhares periféricos.

Às vezes, à noite, antes de dormir, chamava. Gritava. Tentava cobrir com a voz a distância que os pés não podiam vencer. Sempre em vão. A idosa dormia.

Um dia, acordou num susto. A mãe, em seu leito inacessível, tossia. Sua saúde, sem lhe arrancar do sono, agora piorava.

Precisava alcançá-la. Decidiu que ia chegar do outro lado, mesmo sabendo que não suportava a travessia. Ela tinha um plano: seguiria pela margem, ladeando a borda na direção do poente. Algum dia ela acabaria chegando ao final daquele abismo. Aí ela só daria a volta. Elegantemente.

À noite, fez a mala. Logo cedo, o dia mal e mal dourando as coisas, levantou-se da cama e virou-se para o Oeste. Às suas costas, tinha o sol. À sua direita, o abismo. Da margem oposta, a margem da mãe, soprava um vento de urgência, com um odor infeliz que coletou pelo caminho. Tomando a mala pela alça, olhou para o colchão, para as cobertas velhas pela última vez. E, inspirando o ar recém-infectado da alvorada, começou a andar.

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quarta-feira, 23 de julho de 2008

Inaugurando a série "alegria de ex-revisor"

De um cartaz que vi na loja de uma famosa rede de cafeterias (gasp!).


Arte-final: Cara, preciso das informações pro crédito no rodapé.
Atendimento: Pode ser depois? Estou com um monte de coisas aqui.
Arte-final: Olha, o prazo pra mandar pra gráfica tá estourando... e só falta o crédito da impressão.
Atendimento: Eu sei, eu sei. Mas segura essa pra mim só um minutinho. Sei lá, põe um "x" aí por enquanto.
Arte-final: Vê lá, hein?
Atendimento: Pô, confia em mim!

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segunda-feira, 21 de julho de 2008

Cantiga de amigo


"It's still the same old story

a fight for love an' glory,
A case of do or die..."

É, a história é sempre a mesma. Cada castelo tem sua donzela, seu príncipe regente, seu bobo-da corte. Os muros e o fosso protegem das pedras e dos paus do inimigo, quando há. Mas e o dragão? Toda lenda de castelo tem dragão. E contra ele tem o cavaleiro andante, aquele sujeito que troteia por aí de armadura, espada e escudo em punho.

Toda vez que o dragão chega é a mesma baderna. A donzela corre pra torre, desesperada. O bobo, com seu título auto-explicativo, nem fica sabendo. O príncipe? Esse sobe a ponte levadiça, solta os crocodilos no fosso. Ora, se Sua Alteza vai meter suas alvas mãos naquele lagartão imundo! Ele acaba de fazer as unhas, faça-me o favor.

Sobrou pro cavaleiro, e é assim que tem que ser. Ele vai lá, se arrebenta, se queima, se quebra todo, mas põe o bicho pra correr. Faz tudo numa boa, na base da camaradagem mesmo. Não ganha prêmio, não ganha banquete na corte. Nem faz parte da corte, o cara. Lá de vez em quando um menestrel furreco fala dele numa música, mas nada muito além. Mas tudo bem. Afinal, Sir Fulano não está fazendo mais que sua obrigação. Se ele se importa? Nada! O cara é um romântico. Um desses idealistas que andam pelo reino defendendo ideais nobres. Está tudo ali, pintado no escudo dele, em latim.

Mas opa, lá vem o dragão de novo. E de novo, sozinho no descampado, fica o cara da espada. É bom com a espada esse Sir Fulano! E como sempre ele ouve o portão fechar com um "blam" e todo mundo se esconder lá atrás. Ai dele se tentar correr pra dentro. É caldeirão de óleo quente na cabeça.

Não tem jeito. É um trabalho sujo, mas alguém tem que fazer. O escamoso, como de costume, pára na frente dele, rosna, bufa, solta uma labareda pelas ventas. Nada de novo, certo? Lá vamos nós.

Só que dessa vez, o cavaleiro pára e pensa. Ele lembra de como vive sendo torrado e estraçalhado, e de como tem que se virar pra costurar as próprias feridas depois, enquanto no salão do castelo todo mundo comemora e enche a cara.

E não é que de repente ele lembra que tem seus próprios problemas pra cuidar? O dragão nem é assunto dele, no fim das contas. Talvez seja hora de largar essa vida, ir viajar, comprar uma casinha na montanha, aprender jardinagem.

E caramba, deixar a porcaria do dragão e a galera do castelo se entenderem sozinhos, que é todo mundo adulto e bem-crescido.

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quinta-feira, 17 de julho de 2008

Ééé... do Brasil!

Eu já sabia. A epopéia aeronáutica do padre Adelir de Carli levou o grand prix do Darwin Awards 2008.

O Padre Voador, como ficou conhecido, morreu em abril, depois de decolar numa cadeira de praia amarrada a balões de gás e se perder em condições de tempo ruim, levado pelo vento na direção do oceano. Ele completou a façanha levando consigo um GPS que não sabia usar e um pára-quedas que poderia ter salvo sua vida, caso tivesse sido esperto o bastante para desistir do vôo ainda sobre terra firme.

O Prêmio Darwin é conferido anualmente às pessoas que tiveram as mortes mais... originais. A idéia é homenagear (postumamente, é lógico) aqueles que foram dessa pra uma melhor pela força da seleção natural. Um incentivo àqueles que contribuem com sua providencial ausência para a evolução humana.

Para concorrer é preciso:

  1. morrer de forma espetacular por culpa da própria burrice;
  2. não causar a morte de inocentes (esse é o mais difícil);
  3. não ter filhos (ou seja, não ter passado seus genes burros adiante).

Como todo padre, Adelir de Carli tinha feito voto de castidade, e portanto não teria filhos de qualquer maneira. Isso lhe rendeu uma honraria a mais: o Double Darwin. Ou seja, o Padre Voador venceu com um combo. Mais um orgulho para a aviação brasileira.

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terça-feira, 15 de julho de 2008

Footshot Advertising Inc.

O anúncio abaixo é um excelente exemplo de nunca-faça. A foto está borrada porque foi tirada com uma câmera de celular bem fraquinha (do meu) num vagão de metrô. Sem cerimônia, então:


Variações possíveis? Vamos lá:

  • Você é burro. Pare de tentar Fuvest e corra pra cá.
  • Se inteligência não é o seu forte, venha para onde o diploma sai fácil.
  • Faltou talento? Aqui você pode!

Das duas uma: ou é um caso clássico de "deixa que meu sobrinho faz", ou algum colega errou a mão com muita força. Triste, não?


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segunda-feira, 14 de julho de 2008

Fly-me-to

Fotografar é coisa nova pra mim. Comprei uma Cybershotzinha no final do ano passado e virei criança com brinquedo novo. Saio com ela no bolso por aí e fico clicando coisas e gentes e horas.


No fim de semana, veio o ócio me dar coceira no cérebro. Peguei uma lunetinha velha que eu tinha guardada num canto, fiz uma traquitana X para apoiá-la na grade da janela, focalizei a lua e pus a câmera contra a ocular.

Depois de atrolhar a memória da coitada com pretume absoluto e borrões brancos abstratos, consegui isto aqui.



Ficou quase completamente nítida e, depois de um ajuste photoshópico mínimo (leia-se, aumentar o brilho e o contraste), dá até para ver algumas crateras e montanhas.

Gostei. Flickerada, devidamente. Resolução decente aqui.

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