segunda-feira, 30 de junho de 2008

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Uma vez escrevi n'A Árvore sobre um perfume que senti por acaso, numa andança pelas ruas de São Paulo, e que me fez lembrar da infância por ser idêntico ao da marca de sabonete que foi a única lá em casa por anos e anos. Era um cheiro bem peculiar e que eu nunca tinha sentido em outro lugar a não ser nas horas de tomar banho e lavar as mãos.

Como as Madeleines dos romances de Marcel Proust, perfumes e odores estão longe de ser os únicos capazes de tirar a poeira do nosso sótão mental. Não é difícil, por exemplo, transformar velhas músicas em máquinas do tempo emocionais, ou viajar anos e anos embarcando numa receita igual àquela que nossas mães, e elas só, conseguiam fazer. Nesse espírito, passei a tarde de sábado navegando por um fórum de plastimodelismo, e encontrei reproduções das caixas da antiga Revell brasileira. E isso virou pura arqueologia psicológica.

Um pouco de contexto

Para quem não sabe (ou apenas não me conhece), estou falando daqueles kits de peças plásticas que, quando montadas, formam uma maquete em escala detalhada de carros, navios - e no meu caso, é claro, aviões. Hoje em dia os kits ainda são feitos e são até melhores, mais bonitos e fiéis aos aviões originais. Mas são importados, custam caro e só existem em lojas raras e especializadíssimas.

Mas os anos 80 eram um tempo idílico em que esses produtos eram nacionais, baratos e vendidos até no supermercado. Dos meus seis anos em diante, eles foram o presente genérico perfeito para quem não sabia o que me dar, default em natais, aniversários e doze-de-outubros. E era quase uma rotina semanal ou quinzenal passar à tardinha, depois da escola, com minha mãe pela antiga Livraria e Bazar Central, no centro de Novo Hamburgo, e ir para casa com algum avião da Segunda Guerra em escala 1:72 encaixotado embaixo do braço.

Assim, não admira que muitos dos momentos mais marcantes da minha infância estivessem associados, de alguma maneira, à experiência de montar modelos específicos, alguns cobiçados meses a fio pelo meu eu-guri antes de tê-los em mãos.

Esta é a história de um desses momentos desenterrados, redescobertos no detalhe graças ao reencontro das caixas de papelão onde um dia se guardaram.



Bombardeiro

"Vamo, Binho!", disse a mãe. "Depois tu termina de montar teu aviãozinho". O guri, sentado no carpete do quarto, não podia largar o que estava fazendo. Não enquanto a cola não secasse. Não queria ver seu novo bombardeiro, que demorou meses a chegar na melhor loja da cidade, solidificando irreversíveis asas tortas.

A mãe passava pelo corredor arrumando as coisas que levariam à casa da avó, em Hamburgo Velho, para o jantar daquela noite. Desde que os avós se separaram, iam os três, toda semana, visitar. Fazer barulho no silêncio dela, que era preciso. O guri, quase completamente alheio às mazelas da avó, tratava de enxergar apenas a visita semanal. O colo macio, o cheiro seguro e perfeito de lar. Então ele se preocupava com o avião, as asas, a cola. Recusava a pressa. Ganhava tempo, à custa da paciência do pai, que já começava a rosnar.

"Vou te contar esse guri", rançava o velho. "Eu não falo mais! Quantas vezes já falei! Escuta, tá vendo esses cabelos brancos aqui? Cada vez que tu me desobedece, nasce um!"

O pai voltava resmungando para a sala. A mãe começava a ficar apreensiva com o enervamento do pai. Sabia onde aquilo podia dar e não estava disposta a deixar acontecer. Voltava a mãe ao quarto do guri. "Filho, vamo logo. Teu pai tá ficando nervoso. Não dá pra deixar a cola secando em cima da escrivaninha? Ah, é? Mas apóia a asa em cima de uma pecinha. Pronto, assim ela fica na posição certa. Agora vamo, antes que teu pai tenha um chilique. Ele já tá no carro esperando".

O guri teve os poucos metros entre o quarto e a calçada para enxugar os olhos. Sim, já havia o que enxugar. O carro era um Corcel II, a cor era algo como um vinho-metálico. Entrou, já recomposto, sentou-se no banco traseiro, atrás do assento do carona, onde estava a mãe. Agarrou-se ao encosto, gostava de ficar perto dela. Do perfume do cabelo liso, fino, macio.

O pai ligou o rádio. A música virava a página, tudo ficava bem. O Corcel subia o aclive da rua em direção ao bairro velho, no alto dos morros, de onde se via a cidade inteira, as luzes fluorescentes lá embaixo, os poucos edifícios da cidade que para o guri era tão vasta.

Chegaram na rua da avó, uma rua sem saída. Era uma casa fina, mais moderna do que os velhos casarões alemães da vizinhança. Pararam o carro do lado de fora da grade. Tudo escuro. "Viu? Demorou tanto que ela já foi pra cama!" O pai bateu palmas, chamou. "Mãe! Cá estamos por que chegamos!" Nada da avó. O pai e a mãe se olham. "Deve estar com a TV ou o rádio ligados. Ou está lá atrás, na cozinha", disse a mãe. "Binho, chama tu. Quem sabe uma voz mais estridente, né?"

O guri chama a avó. E atende à sugestão de chamar mais perto do lado em que ficava a janela do quarto. E chama de novo. "São esses calmantes que ela toma", disse o pai. "Ela se entope dessas porcarias e depois não acorda! Mãe! Ô, mãe!"

"Não adianta, amor. Vamo voltar pra casa, amanhã a gente volta". A frase da mãe aliviou o guri. Pronto, ele pode chegar em casa a tempo de terminar o bombardeiro ainda antes de dormir. E a cola da asa ainda não estaria seca; se ela tivesse saído de posição outra vez, ele ainda poderia endireitá-la.

Entraram no carro. O pai e a mãe discutiram um pouco, o guri pensando apenas que não queria mais confusão. "Vamo pegar a chave e voltar. Hoje a gente acaba de uma vez por todas com essa história de tomar remédio", irritava-se o pai. "Chega! Nunca mais! A gente morre de preocupação!"

O guri e a mãe nem desceram do carro. O velho foi lá, pegou a chave e voltou, bufando. A mãe já não falava mais. Sabia que quando o marido botava uma coisa na cabeça, só ele tirava. O guri, no banco de trás, gostava cada vez menos do passeio. A família indo e voltando de Hamburgo Velho pra dar um sabão na avó e seu bombardeiro novinho na escrivaninha, com a cola secando sabe-se lá em qual posição esquisita. Pelo menos já estavam chegando na casa da avó.

Motor desligado, freio de mão. "Binho, espera aí". Desceram os dois, o pai com a chave em mãos. A mãe ficou na calçada, cuidando o filho.

O pai entrou na casa. Demorou um pouco. Saiu diferente. Foi falar baixo com a mãe. A mãe levou as mãos ao rosto. O guri não ouvia nada. Espichou a cabeça para fora da janela, fez menção de abrir a porta. O pai respondeu com um tom inédito.

"Binho, querido, fica no carro".

Naquela noite, quando voltou para casa, o guri olhou para o pequeno avião na escrivaninha. A asa estava reta, mas a vida não estava mais.

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terça-feira, 17 de junho de 2008

O full-HD do vovô

A imagem abaixo não é uma foto digital. Ela não foi tirada apontando-se uma Cybershot ou coisa parecida na direção de um avião restaurado em algum show aéreo por aí. Na verdade, ela tem mais de sessenta anos e é um exemplo de como as tecnologias analógicas davam muita conta do recado antes do mundo ser invadido pelos megapixels.

Trata-se de uma foto colorida tirada com filme Kodachrome 4"x5". O enorme negativo desse formato, que mede algo em torno de 10 por 13 centímetros, permite uma nitidez impressionante. Vejam a versão ampliada aqui.

A foto foi tirada em 1943, na saída da fábrica da North American em Kansas City. Ela mostra um bombardeiro B-25 Mitchell ainda cheirando a tinta, passando pelas últimas etapas da montagem antes de seguir para a linha de frente da Segunda Guerra Mundial.

O blog Shorpy, de onde saiu essa maravilha, traz uma galeria cheia de imagens coloridas tiradas nesse formato na década de 40, inclusive com seções dedicadas a aviação e à Grande Guerra. As imagens sao tão nítidas que parecem um tropeço na marcha do tempo. Dá pra sentir saudade de uma época que não se viveu. E tem mais aqui, aqui e aqui.

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