segunda-feira, 26 de abril de 2010

Parágrafo

Do caderno fechado.

Não que ele soubesse. Mas para a mãe, fazer a arrumação anual nos armários e gavetas era mais do que abrir espaço em pastas, picotar contas pagas, livrar-se de canhotos de talões de cheque do ano inteiro. Tinha um quê de agricultura. Era como na infância dela, quando ela via o velho Carlos, seu pai, colher batatas e não entendia o entusiasmo dele com os sacos e tinas de coisas colhidas e frescas. Que se danassem as batatas. Ela gostava mesmo era do campo ceifado, do vazio promissor, do marrom-vermelho perfumado da terra recomeçada. Agora ela tentava forçar o mesmo olhar sobre o que acontecia, contornar a atual perda com uma manobra de expectativa. Fazer da falta entusiasmo. Mas fracassava. A morte do velho Carlos era apenas, e sem negociações, ausência.

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quarta-feira, 14 de abril de 2010

Such Tweet Sorrow

O trágico amor de Romeu e @julietcap16.

A história todo mundo conhece: duas famílias que se odeiam, um romance proibido entre um casal de adolescentes cabeça-de-vento e suas consequências mortais. A tragédia Romeu e Julieta, escrita por William Shakespeare por volta de 1595, é um dos textos mais lembrados da literatura, e por um bom motivo: sua história foi contada e recontada durante séculos em milhares de releituras e adaptações.

A mais recente delas começou na última segunda-feira e vai durar cinco semanas. Chama-se Such Tweet Sorrow, e é uma curiosa ação de narrativa transmídia e RP digital da Royal Shakespeare Company. Desenvolvida em parceria com a produtora multiplataforma Mudlark, a ação consiste de uma adaptação da famosa história para um mundo e um meio onde ela nunca foi contada antes: as mídias sociais.

Cada um dos atores principais foi encarregado de cuidar do perfil de seu personagem no Twitter. É pela interação entre os perfis e pelos conteúdos que eles postam que a trama se desenrola, e seguindo os personagens e os links que eles publicam vemos a coisa acontecer em tempo real.

Such Tweet Sorrow se passa na Inglaterra, e não na Itália. Além disso, várias licenças poéticas foram tomadas. No original, além de ser de uma família inimiga, Romeu está ferrado porque o pai de Julieta quer mesmo é casá-la com um jovem rico chamado Páris. Isso não convenceria ninguém em 2010, e na adaptação Romeu vai conhecer Julieta quando ela e a família estão de mudança marcada para a Austrália. Personagens coadjuvantes também passaram por ajustes para ficarem mais plausíveis para o público atual: o primo Tebaldo e a ama de Julieta viraram irmãos dela.

O Romeu e Julieta tuiteiro não tem falas rebuscadas. Quase tudo é improvisado. Cada ator recebeu um roteiro aberto dizendo o que seu personagem precisa fazer, quando e com quem, a cada hora de cada dia - e o elenco segue esse mapa tuitando e postando o que der na telha. A encenação também não é fechada: os personagens interagem com os seguidores. Eu recebi um reply malcriado do Benvólio e estou sendo seguido por ele.

Eu não sou fã de adaptações que atualizam clássicos. Para mim, elas nunca são muito bem-sucedidas, nem criativa nem esteticamente. A versão para o cinema Romeo + Juliet, dirigida por Baz Luhrmann e estrelando Leonardo DiCaprio, por exemplo, me dói os rins só de pensar. Mas a encenação da RSC é tão experimental que acaba se candidatando a ser uma nova obra, paralela ao original e reverente a ele. Isso conta pontos. Ela não quer ser a versão definitiva de uma época. Ainda bem. Ela quer apenas ser uma brincadeira interessante e arejada - e consegue.

Bom para a RSC, que com isso encontra um novo modo de cumprir aquilo a que se propõe desde 1870 e poucos: manter o público contemporâneo conectado aos textos do Velho Bill.

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segunda-feira, 12 de abril de 2010

Avião de vestir

O Puffin é prático, rápido e não-poluente. Pena que ainda não exista.

Quando o calendário chegou à marca psicológica do ano 2000, muita gente ironizou o fato de que os céus não estavam cheios de carros voadores, como em nove de cada dez representações do século 21 feitas até então.

A solução para isso pode ser o Puffin, um projeto da Nasa que pretende ser um avião compacto de decolagem e pouso verticais para uso pessoal nas cidades. O Puffin é feito de materiais compostos, é movido a eletricidade, tem alcance de 80 quilômetros e uma velocidade máxima prevista para 480 km/h. Ele leva apenas um ocupante e pesa cerca de 200 quilos.

Vejam o vídeo:



A Nasa anunciou o conceito em janeiro deste ano, e disse à Wired que testaria um modelo em escala do aparelho em março. Até agora, porém, a página do projeto no portal da agência espacial americana não tem nenhuma novidade nesse sentido.

O Puffin, que ganhou esse nome pela sua semelhança com um papagaio-do-mar, não é exatamente um avião bonito. Mas é um conceito novo e provocativo, e parece trazer praticidade à aviação sem deixar de apelar ao prazer de voar. Se o conceito rola ou não rola? Podem me pôr na torcida.

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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Em compensação

Calma. O ser humano tem jeito.

Depois de falar da Emily Howell, ficou um desconcerto no ar. Então é assim, os caras criam um software compositor e condenam a música a um futuro industrializado? Não, claro que não. Não existe substituto para a sensibilidade. Pelo menos ainda.

Uma prova disso é o violonista coreano Sung Ha Jung, que virou um fenômeno no YouTube graças a sua técnica ao executar complicados arranjos clássicos e populares. Soa pouco impressionante? Talvez fosse, se quando Sung-Ha Jung estourou na Web ele não tivesse apenas oito anos de idade.

A humanidade anda fora de moda, eu sei. Mas isso é só fase. É zeitgeist. Quer uma dica? Quando eu perco a esperança na raça humana, assisto ao vídeo abaixo. É o piazinho coreano tocando um arranjo que simula todos os instrumentos do Cânon em Ré, de Pachelbel, ao mesmo tempo. Desarma a gente:

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segunda-feira, 5 de abril de 2010

Conheça Emily Howell

Seu álbum de estreia levanta questões inadiáveis sobre o futuro da música. Entenda por quê.

A música abaixo foi escrita pela compositora Emily Howell, que lançou em fevereiro o seu primeiro álbum, intitulado From Darkness, Light. Ouça-a atentamente.



Mesmo que você não seja um amante do piano ou da música erudita, e mesmo sendo impossível para mim prever que emoção você teve ou que tipo de imagem essa melodia fez passar pela sua cabeça, é seguro dizer que você pelo menos sentiu alguma coisa. Eu me arrisco a dizer que ela pode ter evocado em você emoções melancólicas, e que é provável que você a tenha achado um pouco triste. Talvez você até a classifique como bonita. Talvez a considere simplória. Na verdade, não importa. O que torna Emily Howell potencialmente revolucionária para a música não é apenas como ela soa, mas quem ela é.

Emily Howell é o nome de um programa de computador criado pelo pesquisador David Cope, da Universidade da Califórnia. É o primeiro software capaz de fazer algo que até hoje foi tido como domínio exclusivo do ser humano: criar música original, harmoniosa... e bela.

O software é capaz de reagir a estímulos - que seu criador chama de "críticas". O operador diz o que quer usando comandos em texto ou tons musicais, e Emily Howell vai alterando sua música de acordo. Em uma entrevista recente à NPR, Cope afirmou que a base de conhecimento musical de Emily vem de um programa criado anteriormente por ele, chamado Emmy ou EMI - sigla em inglês para "Experimento em Inteligência Musical". O Emmy era capaz de analisar partituras de compositores clássicos como Mozart e Bach, e então imitar, em uma partitura nova, o estilo do compositor analisado. Emily Howell parte desse banco de dados e, reagindo aos comandos de Cope, cria sua obra. Segundo ele, é como "compor em parceria".

Emily Howell vai um passo além de criar composições novas e originais. Ela consegue soar convincentemente humana. Ela pode ser o primeiro programa de computador capaz de atender a um critério muito comumente usado para definir a verdadeira inteligência artificial: passar no Teste de Turing, um experimento em que um juiz humano, em uma sala isolada, entrevista em janelas separadas de chat um ser humano e um computador, tentando determinar qual é qual. A verdadeira inteligência artificial seria capaz de enganar o juiz, fazendo-o pensar que conversa com um humano verdadeiro. Se o teste for adaptado para a música, Emily Howell é uma candidata fortíssima.

Isso nos obriga a revisar conceitos como autoria, originalidade, valor artístico, inspiração e os limites entre tecnologia e humanidade. Quer um exemplo? Vamos pelo mais imediato: você pode argumentar que não é possível chamar de música uma sequência matemática calculada friamente. Mas toda música é baseada em matemática. Se a matemática de Emily cria sons capazes de provocar reações emocionais em um ouvinte humano, será que o método como esses sons foram compostos ainda importa?

E há as implicações éticas. O que acontece, por exemplo, se um artista usar Emily para compor suas canções, mas não lhe der o crédito? Será que é sensato, aliás, sequer cogitar créditos para Emily? Além disso, se essa tecnologia for desenvolvida a ponto de poder ser usada na indústria cultural, talvez estejamos indo em direção a um futuro em que as gravadoras poderão controlar matematicamente todo o processo criativo da música que comercializam, e depois apenas contratar rostos bonitos para cantar e aparecer em videoclipes. Mas será que isso é muito diferente do que elas já fazem hoje?

Eu não tenho as respostas para essas perguntas, e não sei se estaria pronto para viver num mundo em que Blade Runner anda de mãos dadas com Milli Vanilli. Por outro lado, eu já ignoro o que as grandes gravadoras fazem há anos - e confesso que o pianinho de Emily Howell me agradou mil vezes mais do que qualquer coisa que esteja tocando na MTV hoje em dia. Se isso é bom ou mau sinal, aí é outra história.

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