Topografia
O quarto, ela divide com a mãe. Há duas camas estreitas. Sentada em seu colchão, ela vê à sua frente o leito da mãe, paralelo, contra a parede oposta, suja e embolorada.
Entre a cama dela e a da mãe, mil anos abriram o rasgo de um despenhadeiro terrível, erodido até o fundo da própria Terra. Em comprimento, ele vai do nascente ao poente, e não há vista que lhe enxergue um fim. Sua largura, essa é de uma distância imensa. Mas ainda dá para ver a cama da mãe do lado de lá.
Dia após dia, cada uma em sua margem, mãe e filha represaram o abismo e a preencheram até a borda com vidro, espinhos e os corpos de um milhão de mortos. Assim, pisando sobre esse conteúdo pavoroso, é – em tese – possível cruzá-lo.

Nascia o sol, tentava ela tudo de novo. Limpava as feridas da tentativa anterior, enrolava panos nos pés cortados, fazia uma prece e punha-se a andar sobre a massa suja e aguda.
Debilitada e sem ânimo, conheceu a resignação. Em uma manhã, ergueu-se e tentou cuidar melhor dos pés, abolindo a tentativa. Não tentaria mais atravessar. Esperaria que a mãe acordasse. Sua margem seria o mundo, e ali aconteceria a vida. Não esquecia do abismo, não esquecia da mãe, mas passou a velar o sono da velha com olhares periféricos.
Às vezes, à noite, antes de dormir, chamava. Gritava. Tentava cobrir com a voz a distância que os pés não podiam vencer. Sempre em vão. A idosa dormia.
À noite, fez a mala. Logo cedo, o dia mal e mal dourando as coisas, levantou-se da cama e virou-se para o Oeste. Às suas costas, tinha o sol. À sua direita, o abismo. Da margem oposta, a margem da mãe, soprava um vento de urgência, com um odor infeliz que coletou pelo caminho. Tomando a mala pela alça, olhou para o colchão, para as cobertas velhas pela última vez. E, inspirando o ar recém-infectado da alvorada, começou a andar.
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